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sábado, 9 de outubro de 2010

Acertando os ponteiros

7h00 AM, dia de prova. Enquanto a tevê discursava besteiras eleitorais e o carro do gás interrompia a minha concentração. É. Eu tentava tomar meu café tranquilamente. Mas essa parte da manhã foi como eu posso contar: uma manhã qualquer — os passarinhos piavam como de costume, barulho de máquinas e gritos eufóricos infantis, o sol, a luz. Tudo muito comum — de segunda-feira. Então vou adiantar a história para um momento mais interessante...

12h00. No meio de um banho quente e calmo. Como minha nudez não é atraente, tampouco vale fazer menção literária de alguma parte física do meu eu — salvando-se somente as narinas: grandes e suínas, como se eu quisesse todo o ar do mundo pra mim. Possuo narinas egoístas. Não sei se tenho bom olfato ou se o nariz alheio é mais sensível do que o meu —porém aparentemente meu corpo estava com cheiro de limpeza, então saí do chuveiro. O azulejo azul borrado pela fumaça fazia sauna, juntamente com os mini-mosquitos, que agora mortos se impregnavam grudados no azulejo. Enquanto isso os braços enxugavam as partes baixas, deixando o local impecável e asséptico. Estava apirogênico a ponto de poder adentrar o portão de uma igreja ou uma sala limpa sem maiores problemas com o clero ou o supervisor da seção.

Abri a porta e desci até a cozinha. A comida como sempre — Sempre é sempre em se tratando de família tradicional. A maternidade é um zelo necessário que acalma a mulher. O fato de alimentar a cria antes de ela sair para o meio externo que é dinâmico e incontrolável é um ritual sagrado — na mesa. “Que delícia” — exaltei incontáveis vezes como qualquer filho querido faria. Lavei as vasilhas. Troca de favores em retribuição à deliciosa comida. Obrigação de filho e de homem.

14h20. Arrumei minhas malas. Escolhi blusas chamativas pra chocar a população. Mentira; gosto de estar na moda; sonho com a passarela. Mentira; acho as estampas engraçadas e prefiro que contrastem com minha seriedade. Mentira, eu estava feliz e quis manifestar isso na roupagem. Verdade, ainda podia sorrir. Coloquei o celular na bolsa; vai que alguém me ligue, particularmente nem espero por isso. O telefone me serviria de relógio.

15h27. Conversava com um desconhecido, online. Engraçado como as pessoas são bem mais aprazíveis online. Online eu sou interessante, inteligente; acho; “inlife” eu sou comum e ignorante. Adotei recentemente como estilo fenotípico um ar Wood Allen: feio e esquizóide, utilizando-me de uma máscara para enfrentar cada dia como se fosse o último. A máscara da inocência.

Mas voltemos aos fatos: O papo estava ótimo, mãos rápidas de datilógrafo, a conversa fluía enquanto o tempo imutável corria durante os espaços interstícios das palavras. Lembrei-me que às 15h30 deveria sair de casa para pegar o ônibus universitário às 16h00. As malas já prontas esperando a porta da rua, o ônibus, o ônibus, o ônibus. Meu pensamento de ação repetida transformava em comando maquinado essa palavra, e insistia por vezes, como querendo uma ação: o ônibus, o ônibus... Eu estava atrasado. Eu fora negligente durante a semana deixando o que era pra depois pra agora e esquecendo que o antes é primordial para o sucesso. Pensar antes e agir depois. Esquecera desse detalhe estratégico.

15h37. Meu Deus. Minha prova. Nem estudei direito, droga! Larguei o PC, o café, e segurei forte a mala. Beijei a mãe, a mão e saí abençoado. Obtive uma força psicológica, daquelas forças que só as formigas operárias conhecem instintivamente bem. Como uma mãe que tira o filho debaixo da roda de um carro, uma força inexplicável e cética.

No meio do caminho para o ponto da van que me levaria ao ônibus o celular toca — Quem seria a boa alma a me ligar naquele momento inoportuno? Atendi. Não houve surpresas, a ligação não era pra mim. Desliguei o celular e passei a caminhar mais depressa. Ocupando-me somente de um vazio físico dos movimentos articulares repetitivos.

A Van chega — Juntamente comigo e minha sudorese — às moscas, com um máximo de três passageiros. Assentei-me em um banco confortável e estratégico pra conter o tempo, de modo que pudesse sair do veículo mais rápido e não perder o ônibus. O tempo corria contra meu objetivo.

O motorista deu o primeiro solavanco e a ignição fez seu papel. Estávamos em movimento e ganhando distância. Até que uma moça do lado de fora avista o veículo e estende os braços. O veículo para, a pagante adentra e com o ar sorridente cumprimenta o motorista como sinal de conhecimento de sua pessoa. Ou era por total admiração, ou era por simples dissimularidade, mas a mulher não parava de articular seus gracejos para o condutor.

Minha vontade era a de pegar o veículo e desviar dos sinais vermelhos; deixar o flerte acontecer naquele momento era contra todas as práticas trabalhistas — Mas nem era isso que eu pensava. Uma lei boba, se é que existem leis para gracejos e afins, resolveria tal impasse. Forcemos a distância entre o trabalho e as relações sociais e estamos desfazendo todo o aprendizado de convivência de épocas. Não somos maquinas, somos reais.

Quebrei o laço de pensamento da moça, perguntando-lhe as horas.

“15h40” ela disse e se aquietou. Estava atrasado e apreensivo. Liguei o celular para me certificar de que o horário estava correto. Vi que a moça estava correta, mesmo dissimulada. Virei-me para agradecer a informação, mas ouvi um “até mais tarde no forró Dora” vindo do motorista. Não pude conter o riso. No que todos olharam, fingi que era coisa do celular. Aquelas bobeiras que só quem tem celular sabe.

Dora vivia esquecida. Uma vez esquecera o forno ligado causando-a o prejuízo de um fogão novo. Noutra esquecera a filha na casa da amiga, passando a adotar como desculpa um tom liberal na questão da cria dormir fora de casa. Dessa vez ela esquecera o cartão do banco. E era tarde demais. Pediu ao seu par de danças pra parar e seguiu seu caminho. Esquecida. Esquecera do forró? Não mesmo.

A Van seguia seu caminho tortuoso. No meio a cada parada e solavanco mental — eu ia martirizando aquele momento como se um conhecido estivesse a sussurrar em minhas aurículas “eu te avisei, eu te avisei...”. Pobre de mim, vivendo minutos de pânico. Ao menos poderia reaver a prova noutro dia. Porém a matéria seria extensa demais, eu me perderia, e perderia a disciplina. Se ao menos pudesse adiantar ou modificar algo, sentia como se estivesse dentro de uma organela independente — eu era apenas uma de suas composições. Era um órgão descartável dentro de uma Organela independente. Como uma vesícula cheia armazenando situações que no fim levariam ao nada. Foi por essa independência que o motorista lutou? Transportar pessoas era sua independência. Sua forma de dizer, “estou aqui e você depende de mim para chegar aonde quer chegar”.

15h55. Só um milagre para chegar a tempo. Enquanto o motorista sonhava com a noite eu sonhava com a prova. Era difícil conter o ódio de mim mesmo, da acomodação ao desperdício do tempo por não haver mais hiatos. Eram apenas fatos separados de uma mesma coisa: a minha procrastinação.

A última curva se aproximava, mas havia algo diferente nela: trabalhadores interditavam a pista indicando um desvio como rota. Já era. O tempo estava cravado para meu sucesso e desviar seria perder o tempo e falhar. Comecei a estalar os dedos. Estalava rápido, de maneira que o motorista escutasse meu último sentido de alerta. Se minhas mãos falasse estariam aos berros naquele momento. Parece que deu certo. Estava chegando ao ponto de chegada, mesmo com o desvio alternativo.

16h00. Foi quando vi pelo vidro da Van, no outro lado da pista, o ônibus cruzar direto sem ao menos parar ou desacelerar. Ele esperava que estivesse ali, na hora certa, esperando-o passar.