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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Entre o cimento e a casca


A casa é sua se você se comportar. Se não, é rua. Da couve, você não gosta. Tampouco prova vegetal. O suco da casca do caule da couve é uma delícia. Não são restos de comida, são sobras. Boas sobras que não deveriam ser desperdiçadas. Requentar o café é uma delícia. Não é ganhar o senso de praticidade, é ser econômico; estável. Ser poupado de sair de casa pra gastar. De ferver a gordura em fogo baixo. Tirar do próprio cimento só vale quando realmente é necessário, quando não há mais casca em casa. Só vale quando há fome. É ser mais humano e pensar no outro e no amanhã. Ser notório; o verdadeiro homem.
Uma vez na minha horta uma semente de arroz nasceu sem casca e morreu de frio, desidratada. É pensar no frio, no vento, nos átomos e no tempo, na germinação cíclica. Pensar que aquela semente de arroz não vingada poderia ser seu filho e você a casca, a gestação. Minha terra pariu uma semente de arroz com casca, neonato quente e fresco; cozi e comi o cereal até que se desintegre sua casca, me proporcionando energia nutricional. Nutrição, digerir a casca para sobreviver. Sobrevivência antes, maternidade depois.
Uma vez uma senhora me pediu dinheiro na rua e sem nada virei um somente; virei semente na terra esperando por chuva. Mas sorri pra ela. Às vezes um sorriso basta. Sorrir é música para os olhos de quem ganha o sorriso. É importante sorrir. Sorria. Sorrir é de graça. Se você se permitir será como um sorriso métrico, com direito a refrão chiclete, melodia. E a felicidade poderá ser a nossa casca, a nossa casa. A felicidade pode estar na rua, no escuro da noite entre os vadios e vagabundos, na retribuição do sorriso de uma senhora, no simples gesto de encobrir um filho e beijá-lo antes do descanso REM, no simples e extraordinário “bença” pra avó, no sentimento de dever cumprido quando encostamos nossa cabeça no travesseiro. Dormir de pés cansados é revigorante quanto se tem algo pra poder sonhar no outro dia, mesmo que a juventude já tenha esvaído boa parte dos sonhos em suas loucuras; ser jovem de espírito é o bastante para quem tem os pés cansados.
Uma vez um homem construiu uma casa com tijolos e a arquitetou com sua falsidade “acimentada”. A família que nela habitava vivia muda. Falavam só o necessário. O “bom dia” da alvorada terminava em “boa noite”. Era noite. Era trivial demais. Os filhos não reconheciam a mãe, que tampouco tinha o marido. Tinha-se o homem em casa, e não o marido. Tinha-se uma esposa em casa, e não a mulher para o marido. Tinham-se os filhos, o pai e a mãe, o cachorro, o retrato de família, os sorrisos e até se podia fofocar com os vizinhos, era banal. Na verdade era casca, uma base casca. Faltava compromisso, não tinha o lar, nem a família. Era uma casa. O homem construiu uma casa e criou seus filhos, mas não amou de verdade: foi casca. A mulher colocou toda sua esperança no filho, que agora já é homem: foi casca. A filha procurou por um homem bonito e rico, com seu cimento moldado a pó base: foi casca.
Uma vez um menino queria salvar o mundo, mas se iludiu drasticamente. Os desenhos animados são as figuras que dominam o pensamento infantil, de que o mundo é colorido e divertido; são suas idéias de liberdade. Mas quando a liberdade quebra sua casca ela quer nascer, criar asas, e para um menino ela nasceu na forma de um herói com super poder, liberdade fantasiosa; fantástica, ilusória. Com sua capa, o menino subiu até a janela e se atirou pra voar, foi-se, pensando ser casca leve, livre. O herói voa, mas o menino não. Cimenta. É preciso também ser casa, cimento; pé no chão. Vou ser mais direto: É preciso levitar dentro de casa na casca. A liberdade é o ato de pensar sem rédeas, mas com cautela. É necessário saber a hora certa de parar pra pensar no que é certo. Não se atira da janela sem o super poder que vive dentro da casca. Casa sem casca é tiro no escuro.
Não que quebrar o comportamento seja primordial, mas se faz necessário. Veja os exemplos de como ser feliz: Acordar todo dia com a pessoa amada do lado é bom, pelo menos é o que parece, parece especial. Ficar deitado até o meio dia também é bom, em casa, no domingo. Ter um emprego digno e sem mais preocupações é bom, é o que eu quero. É cotidiano, rotineiro, simples, fisiológico, é cimento. Dormir e não acordar mais é ótimo, se for pra sonhar no paraíso. É casca cúprica, daquelas que revelam apreciações únicas. É diferente.
Morrer seria engraçado se uma cortina se fechasse, dramática e vermelha como sangue quente. Talvez o palco seja dispensável, seja cimento, talvez o aplauso seja dispensado, feito casca. Há muito que lhe dizer, é o que parece, mas se minha casca é mole as palavras se dissolvem e o texto foge. É como doença crônica. É como dominar o dicionário: estar preso as palavras é casca fina. Utilizar termos técnicos, jurídicos é casca grossa. Casca dura, palavra dura; e você dista, é a lei natural do alfabeto: ir de A a Z em documentos. Casca fantasiosa não existe, é cinza. Pelo menos para os adultos o mundo é cinza. É o que acontece quando crescemos: queremos casa, argamassa. Um filme em preto e branco com a fala libra, fôrma e gesto, casca e fibra. Queremos tocar na película e moldar os quadros. Cinema é cimento. Pintura é cimento. É casa.
O limiar entre a espessura do cimento e cada tijolo deve ser respeitado. Temos o compromisso de ser essência, casca; passar vagamente pela vida e ser lembrado como um pequeno e rijo frasco de perfume. Um sândalo único. Mas sem pensar em ser o frasco: cimento; nem em ser somente a marca: a casca. Ser o que há por dentro. Diferente e distante de cada um, ser o que sustenta a união prateleira: colar. Validar o que diferente: publicar. Ser o que é: Perfume. Todos nós somos perfumes.